Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Afonso Tostes

Pequeno Vocabulário Conotativo Fora de Ordem Alfabética da Afro-América de Afonso Tostes

Paulo Herkenhoff

Imóvel. Comecemos pelo Direito. Escravo é coisa2. É a res no direito romano clássico. Nenhum direito cabia ao escravizado – o único direito inegável era a vontade de ser livre. Tronco reconstrói a subjetividade perdida pela res humana3 e situa a obra na chave materialista das classes sociais. Põe na história a “coisa” jurídica recalcada, aquela coisa que é homo sacer em sua vida de errância sem arrimo de qualquer lei (G. Agamben4). Agora, o que era extensão do corpo do homo sacer, depois de vaguear na entropia física, retorna. Não se trata do retorno do reprimido, mas a retomada de uma anseio: liberdade contra opressão. A instalação tem uma agenda precisa e do constante foco na necessidade de revogar o neocolonialismo escravocrata no século XXI. A individuação de cada ferramenta pelo corte aberto pelo escultor, é o argumento de que cada escravizado porta seu próprio estado de exceção 5. Determina o artigo 79 do Código Civil brasileiro que imóveis por acessão física, industrial ou artificial é “tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada a terra, os edifícios e construções, de modo que não se possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou causar dano.” Imóvel na exegese jurídica, um paiol viaja de Minas ao Rio 6. É como se o paiol tivesse iniciado sua volta para Gorée7. Com ele retorna a costa o trabalho expropriado entre a África e o Rio. O que se transporta é o tempo (e, com o ícone, a própria imobilidade social). No centro do centro, um saibro esquálido simula sustentar todo o peso do mundo. Ali concentra-se todo o ocularcentrismo regente do sistema de arte. Concentra-se em movimento, posto que a mostra Tronco justapõe centros nas obras Tronco e Magia Negra 8. O surpreendente imóvel peregrino de Afonso Tostes reaparece no edifício neoclássico projetado no reinado de D. João VI por Grandjean de Montigny(1776-1850) para servir de Praça de Comércio do Rio de Janeiro, ícone da modernização do capitalismo e do sistema de arte no Brasil, atual Casa França-Brasil. Rosana Palazyan, como em Tronco, fez uma exposição de crítica social e institucional neste mesmo espaço, fazendo conexões entre população de rua, ervas daninhas, e as crônicas de João do Rio em A alma encantadoras das ruas (1908), a cidade e este espaço de marco de um capitalismo anacrônico. Ao Brasil, o neoclassicismo aporta o cânon clássico da arte diante do anacronismo, já historicamente inadequado do barroco com o esgotamento do ouro das Minas Gerais, para a nova dinâmica social do século XIX. História é campo de contradição. Defendo que, no Império nascente, seja do neoclássico N.A. Taunay criou Largo da Carioca em 1816, a paisagem do Brasil que melhor trata do poder, da escravidão e da ação sobre a natureza. Paiol de milho e regime alimentar do escravizado - era mais barato substituir o escravizado morto por má alimentação do que alimentá-lo bem (Manuel Maurício). Isso explica que a Geografia da Fome (1946), de Josué de Castro, tenha sido escrita no Brasil para desnaturalizar a fome e inscrever em seu quadro a origem social. Quando engessado em bolsões da Academia, o cânon foi sempre objeto de disputa e rejeição desde o século XIX. O paiol moveu-se. É tarefa da arte mobilizar o imóvel e colocar em marcha a memória das revoltas quilombolas.


Bóia-fria. Muitas ferramentas repousam sobre a parede. Seu conjunto forma um pequeno monumento contra-Jacquard. Obsolescência ou desemprego? Joseph Marie Jacquard inventou o tear mecânico (1801), baseado em cartões perfurados, um sistema de computação ancestral. Sem o auxílio de um operário, o tear podia tecer um padrão com auxílio de um sistema de ganchos e agulhas conforme a regra dos cartões. O uso intensivo do trabalho dos teares de Jacquard precipita um monstruoso desemprego na Revolução Industrial. Havia cerca de 11.000 teares de Jacquard em 1812. Se é uma revolução tecnológica, é também base de insurreição social, ao gerar a Revolta dos Canutos em 1830, em Lyon, um centro da indústria têxtil na França. Em francês, os canuts eram operários que usavam um pequeno bastão de madeira (o canut) que se manipulava na tecelagem da seda. Não custa lembrar que a França revolucionária abole a escravidão na metrópole, mas a mantém nas colônias pelo mundo, como na África até 18489. Na exposição Tronco, os cabos calejados pelo trabalho, a vontade matérica do escultor, um tema caro a Gaston Bachelard sobre os devaneios da matéria da Terra10, encarnou uma madeira óssea, que incorpora as articulação do corpo do que trabalha à “anatomia” da ferramenta. Ao mudar a forma visível da coisa, o artista alterou nossa próprio olhar político sobre elas. O cabo-bastão, foco da obra de arte seria aqui a exposição da fragilidade social desde a introdução do agro-negócio na economia contemporânea brasileira e sob o novo Código Florestal Brasileiro aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidente da República em 2013 e suas concessões ao capital11. Bóia-fria é neo-escravidão. Quantos milhares de escravos contemporâneos há no Brasil, nas florestas, no campo e mesmo nas grandes cidades?12 A exposição solicita a produção da visibilidade social da escravidão como história e atualidade. Tronco é uma resposta para o Brasil da pergunta de Cornell West sobre a principal tarefa para o filósofo afro-descedente nos Estados Unidos: é lutar pela emancipação da afro-descendência West converge para a tarefa emancipatória da educação sinalizada por Paulo Freire em 13Pedagogia do Oprimido (1968). Como um mantra emancipatório, frequentemente, introduzo a indagação-aforismo de West em meus textos sobre a arte dos afro-brasileiros desde o pós-guerra. Em Tronco, como na Pedagogia do Oprimido do educador Paulo Freire, a relação entre colonizador e colonizado, hic et nunc, nos sudários expostos sob forma de cabos de enxadas e de ancinhos, mas também no espaço social brasileiro14. Afonso Tostes absorve, por fim, a educação emancipatória de Paulo Freire.


Sobre provérbios e falsos cachimbos. O hábito do cachimbo faz a boca torta. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. A escultura – a ação da vontade material do duro sobre o mole – ainda permite aplicar o princípio de Michelangelo Buonarotti ao século XXI: a escultura opera conforme o conhecido aforismo “per forza di levare”, pela ação de retirar matéria. No ethos destes objetos de Afonso Tostes, os cabos parecem lavrados pelo próprio ato de empunhá-las no trabalho de foices, enxadas e martelos de ceifar, capinar, bater e não pelas mãos hábeis do escultor. E o mármore Escravo moribundo de Michelangelo seria a reação estética do autor diante da matéria morta (cfe. Richard Fly). O foco da fenomenologia do espaço político de Tronco é o descentramento do espaço sem conciliação; o paradigma da simetria, própria do prédio clássico riscado por Grandjean de Montigny, não mais oferece estabilidade via o poder da forma do monumento ao Ideal. Tronco insiste em levantar a dimensão política do barroco, não pela forma, mas por seu modo de dinamizar o espaço do monumento (ver G. Carlo Argan15). O olhar vagueia e erra entre asustentação do saibro ósseo lavrado central do paiol, sob a pressão da gravidade e do Real, e a centralidade vazia do Tronco tripóide. A pegada e a fricção do músculo em cabo rígido tanto movem até que esculpem. O trabalho, pois, molda o mundo. O escultor transfere seu próprio trabalho, sua expressão, sua energia e seu esforço, sua anatomia e seu suor para o cabo como fenomenologia vivida. Com isso, elimina a cisão da divisão de trabalho entre o trabalho intelectual e o trabalho físico de um subalterno. O que se associa, então, são capítulos da história do trabalho escravo ou exploração do “homem livre” em desamparo. Essas esculturas, com seu discurso dos materiais definidos por seu uso, têm algo de um certo processo de Constantin Brancusi, embora, cabe ressaltar, que Tronco deslocou para o campo político, e não faz qualquer alusão ao conceito modernista de objet trouvé em sua perspectiva formalista e esteticista na tradição europeia. Pode então o escultor contemporâneo ser a metáfora reveladora do trabalho do lavrador e do minerador escravo. Na arte, a história revolve sentidos, faz emergir processos socialmente recalcados e confere espessura ao presente. A exposição Tronco responde com o envolvimento pessoal do escultor com a herança espiritual africana no Brasil. A escultura está impregnada por esta dimensão do metafísico que agrega coesão. Agora, na Casa França-Brasil, confrontamo-nos com o que seria uma contradição para uma perspectiva mecanicista do marxismo: a mútua contaminação entre metafísica e materialismo16, que para alguns poderiam ser uma incontornável contradição. A arte é o que nos traz o confronto produtivo com contradições. No estado de abandono dessas ferramentas agora inúteis, a história do trabalho esperava pela arte. Trata-se de um resgate de seu estado de assimbolia a que estavam reduzidas pela obsolescência tecnológica e pelo desgaste físico, caminho da inutilidade prática. A arte decide, então, o que não se deve nem se pode esquecer.


Calo. Alguns trabalhos, instrumentos com os cabos lavrados pelo trabalho manual, são calos invertidos. É o registro do que se oculta. Afonso Tostes configura a manualidade de seu processo de produção. São sudários, repita-se, como no verbete Bóia-fria. Em sua primeira etimologia, sudarium é o tecido que recolhe o suor. Estes trens são o molde e o vazio do calo, como vestígio imaginário e signo material do trabalho. A primeira afirmação é de que esta arte procura inscrever é o trabalho, sempre obscurecido, ocultado e abstraído no “valor de troca dos signos” em seu processo de circulação17. Marx argumenta que “em sua forma de valor, a mercadoria não conserva o menor traço de seu valor de uso primeiro nem do trabalho útil específico que lhe fez surgir”18. Sem romantismo ou auto-indulgência, Yves Klein foi forjado pela assimilação do valor artístico pelo valor de troca e, analisa Thierry de Duve, assume assim o risco de identificação com o capitalista, o mercado e o proprietário dos meios de produção19. Quais o sentido linguístico dos resíduos dos instrumentos de trabalho neste caso?20. Quando a arte expropria o símbolo da vivência dolorosa do Outro? Quando um artista apropria-se da mais valia simbólica legitimamente pertencente ao Outro?, pois este Outro é quase sempre o socialmente subalterno – sua exclusão da cultura urbana contemporânea tem a função de reservar tal valor simbólico de troca para o artista. A arte, portanto, espera, nesses casos por um novo contrato social, como aponta Bernando Mosqueira em seu texto no catálogo de Tronco. A lavra do cabo é a dimensão hodierna da lavra da terra, esse é um traço da escultura social da exposição. Sobre a marca inclemente do tempo na matéria ferro e madeira, o escultor abre ossos, cicatrizes, símbolos. Esculpir é escarificar para livrar o símbolo de seu sono e o Real de sua entropia física. Seu esforço físico é da ordem da filosofia do experimentado do corps vécu (corpo vivido) de Maurice Merleau-Ponty, base de seu diferendo com Jean-Paul Sartre21. O corps vécu compõe a base teórica do neoconcretismo, em sua construção por Ferreira Gullar, que o distingue do formalismo e da assimbolia do concretismo de Waldemar Cordeiro. O cabo das ferramentas de trabalho lavrado pelo artista apõe o negativo do calo, como a última hipótese de ação do corpo indócil ao sistema de disciplina do trabalho na modernidade.


Reversibilidade. O que me vê na escuridão? Uma sala da exposição Tronco de Afonso Tostes reconfigura a questão posta na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. O que me vê no mundo e se apropria de meu olhar? O que percebo que me vê numa exposição? O que me vê num quadro e me dá consciência do olhar? Como nos vêem essas ferramentas do fundo de sua história de trabalho árduo de mais valia e de dominação? O que nos vê no cabo esculpido de uma ferramenta que é corpo como o corpo de cada espectador? Onde ater-se? No signo material ou em seu desempenho simbólico? A forma ou sua fragilidade ameaçadora é o que nos vê e nos faz ver? O que é uma bandagem – índice de uma fratura não suturada – numa exposição? Tronco é pelourinho, tanto quanto a imagem edificante do martírio do Senhor açoitado, amarrado à coluna, uma estação da Via Sacra, era, na Bahia barroca, o próprio Cristo-escravo no pelourinho com as costas lanhadas em sangue. Metáfora do corpo escravizado lanhado na punição. O que na fratura move o mundo por expor sua fragilidade. Ela é o que desestabiliza o tripé, força de resistência da Física, ou converte seu colapso iminente em potência de resistência como um homem que se defenda com facas domésticas e até mesmo com seus próprios dentes contra o invasor numa gravura de Goya dos Desastres da Guerra, uma confluência das ferramentas-armas de Afonso Tostes, uma afinidade histórica? Como o cupim na madeira, o escultor rói a matéria até o limite sem precipitar jamais sua derrocada. A potência ética está em converter o limite em potência desestabilizadora do espectador, o já sem utilidade social em novo motor da consciência. Isso pode, então, ser reconhecida no campo ético da arte de resistência - o trabalho tem um pulso brechtiano22. Neste conjunto, separados, foice e martelo – com todo o significado que o par de ferramentas cruzados representou no século XX - buscam o reencontro com uma sociedade crítica que buscasse violentar a violência, nos termos de Michel Foucault.


Folia. Num canto da exposição, um conjunto de enxadas fatigadas se articula como sua última possibilidade de estar no mundo antes de serem recicladas num ferro velho e seu cabo virar lenha. Há neste espaço de exposição uma folia em repouso, um cortejo do trabalho cumprido. Algo pode, então, se deslocar do Real para o Simbólico. A exaustão é tão ativadora como um personagem do teatro de Beckett. Em tempo de celebração, cabia esquivar-se de tempos em tempos da enxada-trabalho no fim da capina do imóvel para a enxada-signo da Dança das Enxadas – tradição rural de Minas. Camponeses dançam em roda – a geometria do lúdico não se desprega de uma ordem disciplinaria do trabalho - cantam e batem suas enxadas como se vê num quilombo de Minas Gerais, com cantos e ladainhas a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito no filme Sonhos e Histórias de Fantasmas (1996) de Arthur Omar. Repentinamente, alguém busca água no poço, a queda do balde é longa, e, como numa história de Alice ou de Jules Verne, a vista cai num baile funk numa favela do Rio de Janeiro. Oposições do escravismo pós-colonial resistente, a biopolítica opera com um arco histórico que vai dos quilombolas ao funkeiro. Em Tostes, há louvor ao trabalho e, depois, um ato de submissão ao patrão como processo de tomada de consciência sobre o processo de dominação. O espectro hegeliano da subalternidade da aceitação dos dominados ecoa no som potencial dessa dança da dialética do senhor e do escravo da Fenomenologia, evocada criticamente por Afonso Tostes.


A cegueira das lâminas. Na obra de Louise Bourgeois instrumentos de ofícios, como tesouras e agulhas remetem ao trabalho com tapeçaria, atividade de gerações da família. A artista politiza o trabalho com referências aos teares Jacquard supra discutidos no verbete Bóia-fria. EmBourgeois, o discurso das lâminas alude ao trabalho e à vida (a tesoura que corta o cordão umbilical), ao gênero através das patas da aranha-mãe, vistas com agulhas, que tecem a teia, defendem a prole e provêm o alimento. Uma guilhotina determinará o corte direto e incontornável da memória para Bourgeois. E o mesmo para um escravo, daí o empenho de Afonso Tostes em se colocar no lugar do memorialista dos quilombos. Também um escravo, que forçadamente atravessa o Atlântico, para servir na América sofre o corte brutal do tempo sem retorno deixado inapelavelmente para trás23. Perder a identidade, corromper a memória e a própria língua, quando escravos, de diferentes grupos linguísticos eram misturados com estratégia de desarticulação. Por isso, também, uma instalação de Tostes ser Articulação: fundir luz à arte, ao trabalho, à metáfora da faiscação, à luz própria do Orixá que guia o trabalho do escultor crente. Afinal, neste contexto, cultuar os orixás é um modo de fortalecimento contra as agruras contemporâneas da hostilidade racista, do apartheid social e outros modelos de práticas anti-civilizatórias de denegação que conduz à integridade do sujeito diante da crescente intolerância do fundamentalismo cristão?


Paradoxalmente com relação à luz que atravessa e tece conceitualmente a mostra, tudo que aqui está em exposição é lâmina cega, como as tesouras e foices. Não havia metalurgia na colônia – por medo da metrópole da produção de armas... ou a emancipação e a liberdade. Na colônia não havia metalurgia que fabricasse instrumentos de trabalho, pregos ou armas. A quem se reserva a imagem do castigo doloroso de castrar com faca cega?
Nictofobia. A criança chora na noite. A escuridão é o incontrolável aterrorizante. Ouve-se um tiro, o primeiro. Ninguém acode a criança. Ela tem medo da escuridão por sentir-se só. Articulação. Aguarda uma voz contra a solidão. Chora para ter respostas. Precisa ouvir sons para entender-se no mundo. Sem escuta, a criança clama em pranto em treze choros, seguidos por tiros. Também foram treze. A criança não morre só dos treze tiros. Também é morta pela falta de escuta social. No último a voz na narrativa de Mineirinho, texto de Clarice Lispector, a criança morta é o adulto marginal. Morre com um São Jorge, o guerreiro. “Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem,” escreve ela. Numa sala da exposição, a fobia do incontrolável dá-se em embate com o ocularcentrismo. Agora, lágrimas de fogo sobem para iluminar o olhar nictofóbico. Tostes elabora sobre a noite obscura da sociedade escravocrata. A nictofobia não se confunde com o escotoma, o punctum cecum, a região do globo ocular em que a visão entra em pane. Essas pinturas poderiam bem ser as faíscas arrancadas por enxadas e picaretas.


Ou lavradas na cultura da faiscação do precioso na produção escultórica de Afonso Tostes. Contra a hegemonia da visão, alterar o modelo de indagação epistemológica. Pode-se, afinal, indagar como é o processo de conhecer através da opacidade e da cegueira? Cildo Meireles comparou a cultura dos guetos sócio-culturais (negros do Harlem na década de 30, índios do Brasil nos anos 60 em permanente pressão genocida, os presos políticos torturados e confinados a prisões solitárias em qualquer lugar do mundo, os internos em instituições psiquiátricas) ao fenômeno astro-físico buraco negro, estrela em colapso da qual nada escapa ou emana, inclusive a luz. Se não há menção a um artista plástico afro-descentes no simbolicamente poderoso poema Magia Negra de Segio Vaz,24 a reação deve ser indagativa: por quê? A responsabilidade não pode recair sobre o poeta, porque antes é necessário entender como grande parte da crítica e historiografia brasileira oblitera, degrada ou recalca esta produção plástica dos afro-descendentes nos debates contemporâneos Como grande parte desta crítica é subalterna a galerias específicas e a grupos de artistas concretos, não se pode perder de vista a disputa pelo mercado e a constituição do monopólio. Estas são algumas bases de um novo racismo que está no ar. O poema Magia Negra de Vaz chega como processo de resistência. Pensar o ambiente atual em que vivemos a partir de Paulo Freire e propor-se “a si mesmos como problema” de falta de escuta social. A primeira ação é ouvir e não se calar. “Porque quem entende desorganiza”, arremata Clarice Lispector.
Pernas de três,  parece que elas querem voltar a ser árvore, origem, memória. Os remos viram lança ponta de flecha.



1 Neste texto, os verbetes são capítulos de uma análise da exposição de Afonso Tostes. O texto está escrito para ser lido e por isso ele estabelece um ritmo de leitura, com frequentes saltos, indagações, silêncios e síncopes. Os presentes verbetes foram escritos em 2014, são aqui publicados sem correções conceituais;
2 O verbo no tempo Presente do Indicativo indica a existência de indivíduos em condições de escravidão em pleno século XXI no Brasil.
3 Tronco é o nome de uma obra de Afonso Tostes e que serviu para título de toda a exposição na Casa França Brasil no Rio de Janeiro entre 2013-2014.
4 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: sovereign power and bare life. Transl. Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University Press: 1998,
5 Aqui, o frequente uso do termo “escravizado” em lugar de “escravo” atende á argumentação da artista Rosana Paulino, que
argumenta que os indivíduos são “escravizados”, não nascem escravos, para indicar um ato escravizador sobre cada um deles.
6 O professor Álvaro Nascimento, em palestra na Casa França-Brasil por ocasião da mostra Tronco (1 de fevereiro de 2014), apontou para o fato político de que o Afonso Tostes fizesse um deslocamento do paiol para as cercanias do porto do Valongo, por onde desembarcaram centenas de milhares de escravos do tráfico do Atlântico.
7 Gorée é uma ilha a três quilômetros da costa de Dakar no Senegal. Embora haja fortes controvérsias com relação a sua importância no contexto do tráfico negreiro do Atlântico, Gorée tornou-se, sobretudo, um símbolo contemporâneo para o reconhecimento da partida dos escravos para a América.
8 A exposição Tronco teve a curadoria de Bernardo Mosqueira. Foram exibidos quatro núcleos: Magia Negra, Sala de trabalho, Articulação e Tronco (todos de 2013) que também deu o título à mostra. O texto de Mosqueira é fundamental por sua dimensão crítica e na análise de cooperação intelectual entre o artista e o curador na construção deste processo.
9 Um decreto de abolição da escravidão nas colônias foi assinado pela Convenção em 4 de fevereiro de 1794, mas não teve alcançou seu objetivo.
10 BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries de la volonté. Paris, Librairie José Corti, 1947.
11 O pintor maranhense Thiago Martins de Melo tem trabalhado com uma agenda política que articula dimensões da história e da atualidade, a religiosidade afro-brasileira, a aliança entre o Estado (nas dimensões federal e estadual no Maranhão), a sustentabilidade e a simbologia do meio ambiente. Sua narrativa tem uma dimensão rapsódica como na série de pinturas Café Deutschland (1977-1984) de Jörg Immedorf.
12 Nos debates de 2014 sobre a exposição, o professor Álvaro Nascimento mencionou o caso dos bolivianos escravizados em indústrias clandestinas em São Paulo.
13 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 17ª edição, 1987.
14 Estima-se que entre 1995 e 2013, cerca de 45.000 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados no Brasil. Em 2013, foram 1359.
15 ARGAN, Giulio Carlo. The baroque age. New York, Rizzoli, 1989.
16 Em debate a 1 de fevereiro de 2014 na Casa França-Brasil, o escultor Afonso Tostes, o curador Bernardo Mosqueira e o historiador Alvaro Nascimento levantaram os aspectos metafísicos e de sociologia das religiões a respeito da religiosidade herdada da África e as trocas ainda vigentes entre o Brasil e suas matrizes africanas.
17 GOUX, Jean-Joseph. “Marx et l‘Inscription du travail.” In: “Théorie d’ensemble’. Paris, Seuil, 1968, p. 189.
18 MARX, Karl. O Capital, vol. I, capítulo I, apud J.-J. Goux, ibidem, p. 196.
19 DE DUVE, Thierry, and Rosalind Krauss. “Yves Klein, or the Dead Dealer.” MIT, October, 49, summer 1989, p. 72-90.
20 GOUX, Jean-Joseph, Op. cit. nota 17 supra, p. 191.
21 Ver STEWART, Jon. “Philosophy and political engagement: letters from the quarrel between Sartre and Merleau-Ponty”. In STEWART, Jon (ed.). The debate between Sartre and Merleau-Ponty. Evanston, Northwestern University Press, 1998, p.327-354.
22 A arte de resistência implica em riscos e estratégias, não é a arte de subserviência a partido político ou a subalternidade a um programa ideológico (a que o crítico literário Antonio Candido, professor da USP, denominou de “vassalagem ideológica”, em referência aos stalinistas do Partido Comunista na década de 1950) e muito menos se refere à adesão oportunista aos movimentos da hora, em que por vezes se confundem o narcisismo exibicionista da consciência e das estratégias diante do quadro político mais imediato.
23 KARSZ, Saul “Time and its secret in Latin America”. KARSZ, Saul et allii. Time and its philosophies. Paris, UNESCO, 1977, p. 155-168.
24 O texto de Sergio Vaz deu origem ao título da obra Magia Negra referente ao paiol transposto de Minas Gerais ao Rio de Janeiro.

 
 
 

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