Roberto Alban Galeria

Artistas Artista

Afonso Tostes

as coisas que ainda existem

Luisa Duarte

Março de 2022. Ao nosso redor, toda uma cartografia de mundo até ontem compreensível parece se fragmentar sem que consigamos entender ainda qual fisionomia o futuro terá. Olhamos para os lados e muito parece falhar - o clima, a democracia, as gastas epistemologias ocidentais, as falsas promessas tecnológicas. Diante dessa espécie de colapso, o movimento mais comum é o de tentar consertar, desistir (o jogo terminou e salve-se quem puder) ou, ainda, negar. Mas talvez se trate menos de procurar respostas tão rápidas quanto inócuas e, sim, habitar a falha, "permanecer com o problema".

As obras de Afonso Tostes reunidas em "as coisas que ainda existem" trafegam nesse interstício. Realizadas depois que a pandemia de Covid-19 começou, trazem consigo as marcas de um tempo em que o artista, afeito aos constantes deslocamentos, se viu tendo que parar.  Residindo temporariamente na Bocaina de Minas, viu a região ser afetada por uma série de incêndios ao longo de 2020. Tostes passou então a recolher pedaços de árvores que ficaram carbonizadas, além de pequenos galhos. Paralelamente, começava a usar em suas experiências o carvão, material relacionado ao desmatamento. Traçava, assim, uma espécie de inventário dos vestígios de diferentes mortes da natureza. Somou-se a esse repertório fragmentos de uma antiga enciclopédia ilustrada, cujos volumes foram encontrados ao acaso por Tostes nas ruas de Copacabana e guardados, esperando o momento em que algum gesto que viesse transfigurá-los.

Esse é o conjunto que origina tanto os trabalhos que vemos hoje na forma de objetos de parede (não são nem esculturas e tampouco pinturas), quanto aqueles nos quais o artista utiliza as folhas da enciclopédia como base para desenhos feitos com pigmentos de pó residual de madeira. Em um processo que aproxima tais elementos de modo a friccioná-los, Tostes realiza uma espécie de assemblage que remete ao território movediço sinalizado no primeiro parágrafo deste texto. Comparece aqui, uma vez mais, o conhecido diálogo cultivado por sua produção entre o universo da "natureza" e aquele outro, próprio das cidades.

Se as madeiras carbonizadas e o carvão evocam a sanha destrutiva que marca a nossa época e particularmente o Brasil atual, os fragmentos da enciclopédia traduzem uma forma de organização do saber característica da racionalidade ocidental. Não por acaso as primeiras enciclopédias de que temos notícia nascem no século XVIII, sendo assim contemporâneas do iluminismo. Iluminismo cujo ideário trazia consigo a convicção de que a razão seria capaz de conduzir a humanidade progressivamente em direção à paz e à justiça social em prol de sua emancipação. Sabemos bem acerca dos limites desse ideário moderno. E sabemos também, nos dias que correm, a respeito dos desdobramentos disso que se chama Antropoceno. Termo que sinaliza os impactos de proporções geológicas que a jornada humana teve e tem sobre a transformação da dinâmica ambiental no planeta desde o século XVIII até o presente.

Ora, os trabalhos hoje reunidos colocam em cena índices provenientes desses territórios tendo como prisma as crises do presente. Não por acaso o título da exposição – "as coisas que ainda existem" – traz um duplo sentido. Por um lado, enuncia um estado de perda eminente, o ainda nos diz sobre aquilo que está entre nós, mas pode em breve desaparecer. Por outro, afirma o valor da existência do que permanece. É justamente esse o movimento dado não só no plano conceitual, mas na própria forma dos trabalhos hoje reunidos. O breu do carvão mesclado com as madeiras carbonizadas traduz o teor apocalíptico que atravessa o zeitgeist atual. Mas notem que sobre os mesmos se encontram folhas com ilustrações coloridas das mais diferentes espécies da fauna e da flora. Quando vistas de longe, estas obras parecem trazer um contraste entre a introversão do fundo com os seus vestígios do fogo e a vocação lúdica, dócil, solar, dos desenhos de animais e plantas. Mas caso nos aproximemos dessas ilustrações notaremos que as mesmas trazem uma numeração. Cada bicho e cada planta está marcada por um número. Esse dado trivial instaura uma leve ironia, como se aquele universo encantando pudesse se tornar alvo de uma possível ação humana com vias a sua extinção – ainda existem, mas até quando?

Se listamos no começo desse texto alguns aspectos do mundo contemporâneo que vêm "falhando", podemos incluir o corpo como aquilo que se vê mais e mais acossado ao mesmo tempo em que busca uma emancipação inédita. Se os modelos epistemológicos ocidentais, em suas vertentes antropo-falo-ego-logocentricas permeadas por discursos totalizantes, trazem consigo o império da razão e um rebaixamento da experiência corpórea, o mesmo pode ser visto quando observamos os desdobramentos da vida mediada por telas que caracteriza a atualidade. Vivemos uma época em que nos distanciamos da realidade sensível na medida em que habitamos, a maior parte do tempo, zonas digitais cujas telas simulam uma temporalidade para a qual as marcas do tempo nunca chegam. No limite, essa vivência tomada pela virtualidade acarreta uma diluição da dimensão corpórea da nossa relação com o mundo.
Na série de trabalhos nos quais as folhas da enciclopédia, com diferentes verbetes e ilustrações de anatomia, são reunidas de maneira a formar uma espécie de pele sobre a qual serão forjados desenhos com pó de madeira, assim como nas grandes esculturas realizadas a partir de troncos, comparece um elemento crucial para toda a produção de Tostes: o corpo. Desde as pinturas do começo dos anos 1990 há sempre uma evocação de uma dimensão física da existência em tudo oposta à necrose corpórea sinalizada no parágrafo acima.

Assim, estamos diante de uma obra que é completamente consciente dos processos que nos levaram para o movimento suicidário em que nos encontramos e, portanto, sabe que será através de um outro vínculo com a Terra e o corpo que podem estar salvaguardadas alguma chance de que as "coisas ainda existam". Menos do que confrontar de modo antagônico e estreito os âmbitos da natureza e da cultura, o artista parece recordar que se trata antes de forjar uma maneira de habitar o mundo na qual humano e não humano não se relacionem de forma hierárquica, com o primeiro devorando o segundo. Se o título da exposição traz consigo uma simultaneidade entre desalento e esperança, não resta dúvida de que a obra de Afonso Tostes segue os passos daquilo que diz os versos da jovem poeta Ana Estagueri: "lição de árvores / continuar / envergando a haste / em direção ao sol".
 

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